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EMPREGADO DOMÉSTICO – NÃO APRESENTAÇÃO DOS CARTÕES DE PONTO – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

20/01/2022 | Artigos, Direito do Trabalho

GIL DONIZETI DE OLIVEIRA

Os povos da antiguidade acreditavam que a divindade intervinha nos julgamentos e demonstrava se o réu era culpado ou inocente. Duelos eram comuns para dirimirem os litígios. Houve tempos em que os julgamentos eram apenas baseados nas impressões pessoais dos juízes. Na Idade Média, por exemplo, os julgamentos eram bastante influenciados pela religião, política, conveniências pessoais e até mesmo pelos costumes, nas quais os acusados só se salvariam por milagres. Assim, nas formas primitivas de solução dos litígios, o estudo da prova era totalmente irrelevante.

Prova é todo meio destinado a convencer o juiz a respeito da verdade de uma situação de fato. A finalidade da prova é convencer o juiz e buscar a sua convicção sobre o que se discute no processo, valendo lembrar que o juiz conhecerá os fatos através da prova e o julgamento é a aplicação da lei de acordo com os fatos esclarecidos pelas provas apresentadas.

No processo judicial brasileiro a regra geral é de que o ônus da prova, ou seja, quem tem que provar, é de quem alega ou acusa, mas existem exceções a esta regra nas quais a distribuição do ônus da prova ocorre de forma diferente da regra geral mencionada, vale dizer, deixa-se de atribuir o ônus da prova a quem alega ou acusa e imputa-se este ônus e responsabilidade àquele a que é feita a acusação ou a alegação. Ônus significa carga, fardo, peso. Portanto, se o autor da ação judicial não provar o que alega, pela regra geral, o réu será absolvido.

A distribuição diferente do ônus da prova não é feita de forma aleatória, mas tão somente nas circunstâncias em que nosso legislador entendeu que uma das partes está mais habilitada e capacitada para fazer a prova por ser a mais preparada e em melhores condições como, por exemplo, pela complexidade da prova, por se tratar de prova em poder de uma das partes, pelo melhor poder econômico ou simplesmente por medida de proteção.

O Código de Defesa do Consumidor, reconhecendo a vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor, talvez seja o melhor exemplo da opção de tais critérios excepcionais do ônus da prova quando adota a inversão do ônus nas relações de consumo em benefício do consumidor, estabelecendo em diversas situações que cabe ao fornecedor provar que o fato não ocorreu como alegado pelo consumidor, criando regra própria totalmente diferente daquela geral constante do Código de Processo Civil.

Esta inversão do ônus da prova também é prevista na Lei Complementar nº 150/2015 que trata do contrato de trabalho DOMÉSTICO, pois que ali foi estabelecida no seu artigo 12 a obrigatoriedade da adoção de cartões de ponto para o registro da jornada de trabalho do empregado doméstico, vale dizer, o empregador doméstico tem a obrigação e deve exigir que o empregado doméstico registre e anote seus horários de trabalhos nos cartões de ponto, podendo tal registro ser manual, mecânico ou eletrônico. Em caso de processo judicial trabalhista envolvendo pedido relativo a jornada de trabalho, tais cartões devem, obrigatoriamente, ser apresentados no processo como meio de prova da jornada de trabalho.

Nunca é demais lembrar que tais cartões deverão ser fidedignos no sentido de espelhar e retratar a real jornada de trabalho cumprida pelo empregado, com horários variáveis de acordo com aqueles que foram cumpridos pelo empregado dia a dia, sendo inválidos cartões preenchidos com os horários chamados britânicos, que não apresentam variações e indicam o mesmo horário de entrada e saída todos os dias. Sendo invalidados os cartões, as consequências são as mesmas de como se não apresentados.

Se o empregador doméstico não apresentar os cartões de ponto ou controles de jornada, ou se forem eles inválidos, será dele o ônus da prova de que o empregado não cumpriu a jornada indicada no processo, ou seja, presume-se verdadeira a jornada de trabalho indicada pelo empregado, cabendo ao empregador provar o contrário, havendo neste caso uma INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA das horas extras e quanto a outros pedidos decorrentes da jornada de trabalho. Nesta hipótese a prova não é mais de quem alega, no caso do empregado, mas sim do empregador que figura como réu no processo.

A regra da obrigatoriedade dos cartões de ponto para o empregado doméstico deve-se ao fato de que no âmbito doméstico, normalmente, não se faz presente pessoas estranhas à família, dai porque a dificuldade das partes apresentarem testemunhas, revelando-se os cartões de ponto uma prova segura e que protege tanto o empregado quanto o empregador acerca da jornada de trabalho cumprida, sendo esta a razão principal da obrigatoriedade dos cartões de ponto e da inversão do ônus da prova quando o empregador não apresenta os cartões de ponto, porque no caso, houve um descumprimento de sua obrigação de adotar o registro da jornada do empregado, sendo neste sentido as decisões de nossos tribunais, a saber:

EMPREGADA DOMÉSTICA. HORAS EXTRAS. RECONHECIMENTO. AUSÊNCIA DE CARTÕES DE PONTO. Desde a entrada em vigor da LC 150/15, é obrigação do empregador o registro da jornada de trabalho do empregado doméstico, do que se conclui, por conseguinte, na mesma esteira do raciocínio sedimentado no item I da Súmula n. 338 do TST, que é ônus do empregador a apresentação dos registros de horário do empregado doméstico, quando se discutir em juízo a jornada de trabalho, sob pena de se presumir verdadeira a jornada descrita na inicial. Assim, não apresentados os controles de ponto pelo reclamado, deve ser presumida verdadeira a jornada de trabalho da inicial, sopesada com as demais provas dos autos. Horas extras parcialmente deferidas. Recurso ordinário da reclamante a que se dá parcial provimento.

(TRT-13 – RO: 00001007020205130032 0000100-70.2020.5.13.0032, Data de Julgamento: 04/05/2021, 1ª Turma, Data de Publicação: 07/05/2021)

Neste contexto, não é difícil imaginarmos a extrema dificuldade que terá o empregador de desincumbir-se de seu ônus de provar que o empregado não cumpriu os horários de trabalhos indicados por este no processo trabalhista, justamente pela falta de testemunhas que circulam no âmbito de sua residência, o que não ocorre, por exemplo, na relação de trabalho do comércio ou da indústria.

Existe, entretanto, manifestações de um ou outro tribunal trabalhista, porém de forma ainda isolada e que não reflete o posicionamento do Judiciário, de que deva ser considerada a regra geral de obrigatoriedade dos controles de ponto prevista no art. 74, § 2º, da CLT, que restringe a exigibilidade desse controle somente aos empregadores com mais de vinte (20) empregados, o que implicaria que somente os empregadores domésticos com mais de 20 empregados é que estariam sujeitos à adoção obrigatória do cartão de ponto (TRT 15 – Processo 0010560-04.2018.5.15.0074 ROT – 1ª Câmara). Advertimos, novamente, que este não é o posicionamento majoritário da Justiça do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que entende pela obrigatoriedade do cartão de ponto para o empregado doméstico independentemente da quantidade de empregados.

Assim, embora pareça um tema despido de importância, a obrigatoriedade dos cartões de ponto na relação do trabalho doméstico ganha contornos de destaque em face da inversão do ônus da prova estabelecida na Lei Complementar nº 150/2015 para a hipótese de não apresentação dos cartões de ponto no processo trabalhista eventualmente promovido pelo empregado em face do empregador, valendo ressaltar que de nenhum valia será o argumento de que o empregado se recusou a anotar seus horários de trabalhos e o gozo do intervalo nos cartões, porquanto que se trata de obrigação do empregador e que deve ser exigida do empregado, inclusive sob pena de interrupção da continuidade da prestação dos serviços.

Por outro lado e na esteira do que já foi dito em linhas anteriores, a produção de prova testemunhal no processo envolvendo trabalho doméstico é muito difícil em razão da privacidade que norteia o ambiente doméstico, quase sempre frequentado apenas por familiares e amigos, os quais não se prestam legalmente para o testemunho em Juízo, dai a enorme dificuldade que terá o empregador de livrar de seu ônus probatório da jornada de trabalho se não adotar controle de jornada válido e correto do seu empregado doméstico.

 

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