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INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM INTERESSE DE INCAPAZ

20/01/2022 | Artigos, Direito Civil

GIL DONIZETI DE OLIVEIRA

Resumo. Este trabalho tem como estudo o inventário via escritura pública, o chamado inventário extrajudicial, quando existentes herdeiros ou partes menores ou incapazes, que desafia os operadores de direito na busca de soluções que deem ao Judiciário condições para que possa autorizar sua adoção, passando por diversos desafios, entre os quais o controle judicial do inventario, a fiscalização do Ministério Público, a forma operacional do pedido e a observância dos prazos de abertura do inventario e do protocolo da declaração dos impostos da herança que conflitam com a morosidade do judiciário abarrotado com uma quantidade enorme de processos.

De autoria do SENADOR CESAR BORGES, o projeto de lei do Senado Federal denominado PLS 155/2004, criava a possibilidade da adoção do inventário extrajudicial para as partes capazes, desde que existisse um único bem a inventariar (“Art. 2.015. Se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável: I – por escritura pública, extrajudicialmente, quando existir um único bem a partilhar;”).

Posteriormente identificado como PL 6.416/2005 na Comissão de Constituição e de Justiça da Câmara Federal, recebeu o substitutivo apresentado pelo Deputado Federal Maurício Rands com alterações propondo a extensão do inventário extrajudicial a todos os inventários que não envolvam testamento e incapazes e sem qualquer limitação quanto à extensão do acervo hereditário, sendo esta a versão mais ampla aprovada através da Lei 11.441/2007.

Já exposição dos motivos do substitutivo acima referido ficava claro o objetivo da adoção de mecanismos mais simples e céleres aos inventários, inclusive para desafogar o judiciário com questões que, de fato, não envolvam conflitos. Para maior fidelidade, citamos o trecho da exposição do Deputado Federal Maurício Rands neste sentido[1]:

“Com a aprovação das inovações propostas, o ordenamento disponibilizará aos jurisdicionados mecanismos simplificados, seguros e céleres para a realização de procedimentos que não buscam a solução de conflitos, mas apenas a formalização de situações de fato ou de acordos previamente firmados. Grifei

Consequentemente, o ordenamento reduzirá a demanda do Poder Judiciário, permitindo que sua atuação seja cada vez mais focada na resolução de verdadeiros conflitos, casos em que a tutela jurisdicional é imprescindível.”

Neste sentido, a Lei 11.441/2007 introduziu alterações na legislação para possibilitar a realização do inventário e do divórcio consensual por escritura pública, normas que foram repetidas no artigo 610 do Código de Processo Civil vigente. Contudo, quanto ao inventário extrajudicial, estabeleceu como condição primeira que ele não envolva incapazes e que o autor da herança não tenha deixado testamento.

Se por um lado a nova disposição legal ficou alinhada com a busca de soluções mais rápidas e com o desafogamento do Poder Judiciário, retirando dele a apreciação de questões que não envolvam conflitos, mas tão somente, nas palavras do congressista citado, “… a formalização de situações de fato ou de acordos previamente firmados”, deixou de avançar um pouco mais para autorizar o inventário por escritura pública, ainda que envolvam incapazes, quando a partilha se dá pela forma legal e igualitária, vale dizer, sem qualquer transação dos herdeiros, porquanto que nesta forma não é possível, nem mesmo hipoteticamente, ocorrer qualquer prejuízo aos herdeiros incapazes, bastando criar no inventário extrajudicial mecânicos de controle judicial com a intervenção do Ministério Público para fiscalização dos termos da partilha.

Pedidos de autorizações de inventário extrajudicial, mesmo diante da existência de testamento não são novos e o tema já vem sendo enfrentado pelo Judiciário de longa data, os quais têm sido deferidos. Inúmeras decisões poderiam ser aqui citadas, mas diante do pronunciamento do STJ sobre a questão, nos reservamos a citar a decisão proferida por referida Corte Especial[2] no Recurso Especial nº 1.808.767 – RJ, assim como do Provimento 37 da Corregedoria do TJSP, ambos disciplinando o inventário extrajudicial com testamento e que serviram de precedentes.

A riqueza da fundamentação adotada pelo Ministro Luis Felipe Salomão no acórdão anteriormente citado do STJ, revela não apenas os objetivos do legislador da reserva da via judicial do inventário com testamento ou incapaz, mas também os entraves burocráticos da via judicial que não se alinham aos princípios constitucionais e do próprio CPC quanto à prestação jurisdicional mais célere e efetiva da forma extrajudicial, seguindo-se em direção contrária à desjudicialização, a saber:

(….)

De fato, deve-se ter em mente que o norte interpretativo de todos os diplomas citados foi o de fomentar a utilização dos procedimentos com reflexos na ordem social, econômica e jurídica, diante das “reduções de burocracias e de formalidades para os atos de transmissão hereditária, bem como a celeridade, na linha da tendência atual de desjudicialização das contendas e pleitos” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das sucessões, Vol. 6, Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 589). Grifei

Ademais, na linha do art. 5° da LINDB e dos arts. 3°, § 2°, 4° e 8° do novo CPC, os fins sociais e as exigências do bem comum em relação à norma autorizativa de inventário extrajudicial são a redução de formalidades e burocracias, com o incremento do maior número de procedimentos e de solução de controvérsias por meios alternativos ao aparato estatal. Grifei

Especificamente quanto ao inventário extrajudicial envolvendo incapaz, a situação ainda é nova e não existem muitos precedentes, destacando-se a decisão proferida pelo Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Leme/SP (23/07/2021) no processo de nº 1002882-02.8.26.0318[3], através da qual foi autorizada a adoção da escritura pública para um inventário. Contudo, no caso citado nem mesmo podemos considerar que houve a autorização de um inventário extrajudicial na forma ora tratada, porque na verdade ocorreu uma autorização para o herdeiro incapaz ser representado na conclusão de um inventário extrajudicial já em fase final quanto houve a morte do pai dele, herdeiro no inventario extrajudicial referido. Esta conclusão se extrai da leitura do pedido deferido, porquanto que a decisão judicial foi suscinta e apenas deferiu o alvará postulado.

O precedente, de fato relevante, e antecipando-se a uma mudança legislativa almejada pela sociedade e pelo jurisdicionados, foi do Juiz de Direito Edinaldo Muniz dos Santos, da Vara de Registros Públicos, Órfãos e Sucessões da Comarca de Rio Branco/AC, que editou em 08/09/2021 a Portaria de nº 5914-12 (D.O. de 09/09/2021), regulamentando o inventário extrajudicial naquela comarca quando presente incapaz, conquanto que a minuta da escritura seja previamente submetida a aprovação judicial.

Diante destes dois precedentes postulamos junto ao Juízo da Comarca de Morro Agudo/SP a autorização da lavratura de inventário extrajudicial envolvendo herdeiro incapaz, adotando-se no caso a abertura formal do inventário e de forma imediata o pedido incidental de autorização para a lavratura da escritura pública do inventário, ofertando de plano a minuta da escritura, a partilha dos bens na forma legal e a comprovação da quitação dos tributos, mediante posterior juntada da certidão da escritura lavrada para posterior conferência judicial.

Com este procedimento, deu-se a oportunidade do efetivo controle judicial do inventário extrajudicial e a afetiva fiscalização do Ministério Público, ocorrendo o deferimento do pedido nos autos do processo de nº 0000691-27.2021.8.26.0374 pelo eminente Juiz da Comarca de Morro Agudo/SP, Doutor SAMUEL BERTOLINI DOS SANTOS que, além dos fundamentos reiteradamente expostos pelos defensores do inventário extrajudicial envolvendo incapaz, acrescentou outros relevantes quanto a uma possível anulação da partilha, os quais merecem ser transcritos[4]:

(….)

Tem-se, assim, que a inventariante, praticamente, desincumbiu-se de todos os deveres decorrentes do seu encargo (arts. 618, 619 e 620 do Código de Processo Civil), de maneira que a este juízo caberia, praticamente, homologar o plano de partilha que viesse a ser apresentado, tendo em vista que mesmo havendo herdeiro incapaz, é possível a realização da partilha amigável dos bens, a teor do disposto no art.657, caput, do Código de Processo Civil, interpretado a contrário senso. Grifei

É que, segundo o referido dispositivo, seria anulável a partilha amigável em que tenha havido a intervenção de incapaz, cujo prazo, de 1 (um) ano para anulação, conta-se de quando cessar a sua incapacidade (art. 657, § único, inciso III, CPC).

Sucede que somente haveria que se cogitar de invalidação do negócio jurídico em caso de prejuízo que, como se viu, não haverá no presente caso, até mesmo porque, a presente autorização é restrita à lavratura da escritura pública tal qual apresentada sua respectiva minuta.

Importante citar que, enquanto encontrava-se pendente de apreciação o pedido deferido através da decisão anteriormente copiada, sobreveio uma decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara da Comarca de Taubaté/SP de 06/12/2021, no processo de nº 1016082-28.2021.8.26.0625, autorizando o inventário extrajudicial envolvendo incapaz, ali constando também uma relevante fundamentação no sentido de que “..a transmissão da herança se dá de imediata e automaticamente com o óbito da pessoa, pelo chamado direito de saisine (CC art. 1.784), não há porque recorrer ao Judiciário, quando  a partilha se fizer de forma ideal ou igualitária, havendo ou não menores interessados.”.

A questão relativa ao estudo e à adoção do inventário por escritura pública envolvendo menores e incapazes, portanto, ganha maior relevância e agora com precedentes relevantes. Por outro lado, a solução encontrada para manter o espírito da lei quanto ao controle judicial do inventário sob tal forma quando existentes interesses de incapazes foi encontrada de forma satisfatória, porquanto que a prévia submissão da minuta, o fornecimento das certidões negativas e a comprovação do pagamento dos tributos do espólio, com a intervenção do Ministério Público, acabou por dar ao Judiciário um controle absoluto quanto à partilha e ao inventário.

Contudo, outras questões ainda desafiam os operadores do direito na adoção do inventário extrajudicial envolvendo incapazes. No referimos quanto à forma do pedido judicial, sendo que na hipótese optamos pela abertura do inventário com o pedido incidental da autorização para evitar a perda do prazo do inventário judicial para a hipótese de indeferimento do pedido.

Outro desafio é quanto à observância dos prazos, de início do inventário extrajudicial e do protocolo da declaração de apuração do imposto causa mortis na receita estadual, que exige a expedição do alvará judicial dentro do prazo de 60 dias a contar do óbito sob pena de pagamento de multas, agravado em razão do grande acúmulo de trabalho que se constata em todo o Judiciário brasileiro. Vale lembrar que no prazo mencionado está incluso o período entre o óbito e o primeiro contato dos herdeiros com o advogado, a obtenção e o fornecimento de todos os documentos e certidões, a elaboração da minuta do inventário, o protocolo do pedido do alvará judicial, manifestação do Ministério Público, sentença e confecção do alvará, exigindo um trabalho conjunto e ágil do advogado, do judiciário e do cartório de notas, sendo que no caso retratado neste artigo e no qual participamos, sem a  dedicação, o empenho e a agilidade da tabeliã do Cartório de Notas de Morro Agudo/SP, Dra. Aline Metzker Inácio, não seria possível a obtenção do alvará dentro do prazo, notadamente por envolver acervo hereditário extenso, com bens móveis e imóveis, estes de municípios e estados diversos, além de empresas e bens de outras naturezas.

[1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=386354

[2]https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=103942888&num_registro=201901146094&data=20191203&tipo=5&formato=PDF

[3]https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=8U00052RF0000&processo.foro=318&processo.numero=1002882-02.2021.8.26.0318&uuidCaptcha=sajcaptcha_6d5576675b9d469b92c4957b3fd05c48

[4]https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?localPesquisa.cdLocal=374&processo.codigo=AE0001F2E0000&processo.foro=374

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