Reserva Legal Florestal – Desmatamento Lícito – Dispensa de Recomposição – Art. 68 da Lei 12.651/2012

02/07/2021 | Artigos, Direito de Agronegócio

RESERVA LEGAL FLORESTAL – DESMATAMENTO LÍCITO – DISPENSA DE RECOMPOSIÇÃO – ART. 68 DA LEI 12.651/2012

Arquivo Word – Reserva Legal Florestal

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GIL DONIZETI DE OLIVEIRA

 

Resumo. Esta exposição tem como tema o estudo de aspectos controvertidos do instituto da reserva legal florestal, especificamente no que se refere ao que aqui chamaremos de desmatamento anterior lícito, tratado na legislação atual como supressão da vegetação nativa, que se revela de suma para o desdobramento das suas conseqüências na esfera jurídica do direito do particular.

 

Do Direito de Propriedade

 

O estudo do instituto da reserva legal florestal passa, necessariamente, pela análise do direito de propriedade. Por sua vez, não se pode falar do direito de propriedade sem uma prévia abordagem histórica deste instituto. Conforme menciona Maria Helena Diniz[1], citando Theodor Sternberg, “impossível seria a análise dos problemas jurídicos sem a observância do seu desenvolvimento através dos tempos.”.

 

O desenvolvimento da civilização acabou por suavizar o caráter individualista e absolutista do direito de propriedade. A plenitude do direito de propriedade na pessoa do titular do domínio foi relativizada em prol do interesse da coletividade.

 

Embora as restrições ao direito de propriedade sejam mais sentidas no Brasil a partir das últimas legislações, com destaques para a Constituição Federal de 1988 e o atual Código Civil (2002), a evolução histórica indica que desde as mais remotas civilizações o direito de propriedade vem sofrendo alterações em prol da coletividade, em contraposição ao caráter e individualista que por muito tempo reinou entre os diferentes povos.

 

Na propriedade individual desenhada a partir da propriedade coletiva que reinou nos primórdios da civilização, a relação entre o dono e a coisa revelava-se como um DIREITO ABSOLUTO e EXCLUSIVO, exercido em função do titular do domínio e sem limites ou restrições, de forma que o titular do domínio tinha o mais amplo e irrestrito campo de atuação no exercício de seu direito, enfeixando o conjunto de poderes conhecidos como jus utendi, o jus fruendi e o jus disponend ou abutend, respectivamente, o direito de usar, gozar e de reaver a coisa de quem quer que injustamente a possua.

 

Afirma-se que o Código de Napoleão de 1804 teria sido a primeira manifestação clara da submissão da propriedade às regras impostas pelo estado em favor do interesse coletivo. O interesse coletivo emerge como supremacia sobre o interesse privado que focava o domínio da pessoa do proprietário. Nesta nova ordem de valores, as restrições ambientais ao direito de propriedade se revelam a todo o momento.

 

Na fase atual não mais se discute se o interesse coletivo se sobrepõe ou não ao individual, mas sim quais os limites que devam ser impostos ao particular em prol da comunidade da qual ele faz parte e quais as conseqüências jurídicas, no campo do direito do particular, destas limitações a ele impostas. Falamos da função social da propriedade, emergindo daí, como menciona Rui Carvalho Piva[2]uma nova ordem de interesses que o direito protege”.

 

A Constituição Brasileira de 1937 foi a primeira a abordar de maneira expressa a função social da propriedade privada. A Constituição atual traz implícito da supremacia do interesse público ao enunciar a função social da propriedade (art. 5.º, XXIII e art. 170, III, ambos da CRFB/88), assim como os fundamentos para qualquer tipo de intervenção do Estado na propriedade, inclusive das limitações genéricas.

 

Para melhor compreensão da natureza das restrições impostas ao particular pelo instituto da reserva legal florestal, é preciso definir o direito de propriedade. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira[3], “Não existe um conceito inflexível do direito de propriedade” tamanha é a divergência entre os conceitos apresentados pelos diferentes estudiosos e das mais diversas ciências que se debruçam sobre tema. A verdade é como diz o mesmo autor, a propriedade mais se sente do que se define.

 

Historicamente, embora sob censura, é comum os autores se referirem ao Código de Napoleão como primeira tentativa legal de definição do direito de propriedade (MONTEIRO, 1990, p. 88; PEREIRA, 1990, p. 71), que o definiu como sendo “O direito de gozar e dispor das coisas de maneira mais absoluta, desde que delas não se faça o uso proibido pelas leis e regulamentos”.

 

O nosso Código Civil atual, assim como o anterior, não dá o significado de direito de propriedade. A matéria é tratada no artigo 1.221 do Código atual, que repete a preferência do legislador de 1916, optando por relacionar os direitos decorrentes e atribuídos do proprietário, sendo eles o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha.

 

A questão principal advinda dos atributos do direito de proprietário, antes e principalmente hoje, fixa-se na forma de usar e gozar este direito e quais são os seus limites, pois que o direito de usar e gozar já não são absolutos. As limitações são de toda ordem, pública ou privada, em prol da coletividade ou de outro indivíduo.

 

Do direito adquirido do particular em face do interesse comum

 

A ordem jurídica de qualquer Estado democrático tem como uma das bases mais sólidas o princípio da segurança jurídica, aliás, o Estado de Direito tem este princípio como base maior, concedendo aos cidadãos das mais diversas e diferentes classes sociais proteção e estabilidade das relações entre as pessoas e entre estas e o próprio Estado. A proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito, constitui importante instrumento para a manutenção da segurança jurídica e a estabilidade nas relações entre os jurisdicionados.

 

Em face desta segurança jurídica, na hipótese de mudança na legislação, os atos praticados sob a égide da lei anterior produzirão os efeitos segundo os termos da lei revogada. Neste contexto, é possível visualizar, desde já, que aquele que promoveu a supressão da vegetação nativa (desmatamento) de acordo com a lei vigente à época da abertura da terra, não pode ter o mesmo tratamento dado àquele que promoveu a abertura da terra em contrariedade à lei vigente.

 

Desta forma, ao lado da conclusão de que não existe o direito adquirido do particular em face do interesse comum, concluímos também, que as normas que impõe restrições ambientais de toda ordem aos particulares, entre elas o instituto da reserva legal, qualificam-se como questões de interesse da coletividade.

 

Percebam que existem limitações e restrições que são inerentes ao próprio direito de propriedade e, conforme já dito, sempre existiram mesmo quando reinava entre os diferentes povos o caráter individualista e absolutista do direito de propriedade, ainda que de forma menos sensível (Ex: colocação de placas de identificação de nome das ruas no prédio particular, recuo nas construções, abertura de janelas, proibição de determinadas culturas agrícolas em regiões determinadas). Não é difícil imaginar que, vivendo em sociedade, é impossível que este direito seja absoluto, diante da infinidade de possibilidades de hipóteses de confronto entre os interesses dos particulares entre si e com a própria coletividade.

 

Evolução histórica da proteção legal da flora no Brasil

 

Historicamente no Brasil, conforme nos relata Ozório Vieira Dutra[4], verificamos que nas Ordenações Afonsinas (1.500), vigentes após o descobrimento do Brasil e editadas pelo Rei Dom Afonso IV, havia a tipificação do corte de árvore frutífera como crime, proibição que foi mantida nas Ordenações Manuelinas 1521 e nas Ordenações Filipinas de 1850, mas que revelava uma preocupação com a alimentação e não com os recursos naturais.

 

Na Carta Régia de 13.03.1797, segundo menciona Osny Duarte Pereira citado por Américo Luís Martins da Silva[5], aquela norma “declarou a propriedade real sobre todas as matas e árvores à borda da Costa, ou de rios que desemboquem imediatamente no mar, e por onde jangadas se possam conduzir as madeiras cortadas até o mar”. Através da Lei nº 1.507, de 26.06.1867, foi instituída a servidão sobre terrenos marginais aos rios navegáveis.

 

Pouco antes da vigência da lei anteriormente colacionada, havia sido editada a Lei 601 de 18.09.1850, conhecida como Lei das Terras, que tinha como um dos objetivos conter a destruição de terras públicas, conforme menciona Ruy Cirne Lima, citado por Américo Luís Martins da Silva[6], que “dispunha que a aquisição de terras somente poderia ser feita por compra e venda, ao tempo em que proibia expressamente a aquisição prescritiva (usucapião) de tais terras e declarava ser crime a sua posse desautorizada.”.

 

Ainda no século XIX, o Brasil passou por duas Constituições. A de 1824, do Brasil Império e a de 1891 que veio logo após a proclamação da República. Nenhuma delas trouxe qualquer disposição da proteção ou da exploração da flora no Brasil. Somente com a edição do CÓDIGO CIVIL de 1916 é que iniciamos a edição de leis próprias desta natureza, mas com uma clara omissão do legislador no que se refere à proteção da flora no Brasil.

 

Os anos que se sucederam à instalação da “Nova República” foram importantíssimos para a inauguração da legislação ambiental. Conforme lembra Ozório Vieira Dutra[7] o Código Florestal de 1934 é fruto de idéia nascida em 1920 do presidente Epitácio Pessoa, que trouxe o mais polêmico artigo instituindo a chamada “quarta parte”, que era a reserva obrigatória de vinte e cinco por cento de vegetação nativa existente em cada propriedade rural. Constitui ele o ponto e principal para o estudo do instituto da reserva legal, pois que antes da sua vigência, não havida qualquer regulamentação ou restrição quanto à utilização do solo e à preservação da flora no Brasil.

 

O “golpe militar de 1964” inaugura uma nova ordem política, econômica e social. É sob esta nova ordem política que, no ano seguinte (1965), surge um novo Código Florestal (Lei n° 4771/1965). Basicamente, seus objetivos seguiam a mesma linha do seu antecessor, mas trouxe algumas inovações e acabou por trazer novas restrições e limitações ambientais quanto à ocupação e exploração do solo, bem como no que se refere à proteção da flora. Se na versão de 1934 a polêmica maior se resumia na quarta parte, que proibia o desmatamento total da área pelo proprietário, no novo Código de 1965 ficou claro o objetivo do legislador de transferir para o particular o ônus da proteção da flora no Brasil.

 

A edição da Lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente) e de outras posteriores acabaram por mudar de forma drástica o Código Florestal de 1965 e produzir, de fato, uma legislação ambiental eficaz e com fortes traços de intervenção do domínio do particular em face do bem comum. Sobreveio a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, com abordagem direta da questão ambiental, fixando e estabelecendo a nível constitucional as diretrizes do direito ambiental e a função social da propriedade.

 

A Lei 7.803/1989 alterou o Código Florestal de 1965 para introduzir nele a exigência de averbação da reserva legal junto à matrícula do imóvel, obrigação até então inexistente, e fez outras alterações no Código Florestal de 1965. A Medida Provisória 2.166-67/2001 introduziu novas alterações no Código Florestal. O Novo Código Civil (2002) estabelece de maneira minuciosa as características da função social da propriedade, acentuando as restrições, limitações e a função social da propriedade.

 

Por fim, surge a Lei 12.651/2012, também chamado de NOVO CÓDIGO FLORESTAL e através dele inúmeras alterações, entre outras, no seu inciso IV do artigo 3º a área rural consolidada como sendo de ocupação preexistente a 22 de julho de 2008, o Cadastro Ambiental Rural – CAR em substituição à averbação da reserva legal na matrícula do imóvel (art. 29), o cômputo das áreas de preservação permanente (APP) na reserva legal (art. 15), áreas consolidadas em APP até 22 de julho de 2008, leia-se exploradas, com o estabelecimento de faixas de recomposição a partir do tamanho do imóvel (módulos rurais), introdução do PRA (Programa de Regularização Ambiental) e o art. 67 que permite que a reserva legal seja constituída nos percentuais existentes em 22 de julho de 2008, se inferiores ao percentual legal, mas desde que o imóvel tenha área inferior a quatro (04) módulos.

 

Para o estudo ora proposto, a importância maior está no artigo 68 que dispensa a obrigação de recomposição para os proprietários que, ainda que conte com percentuais de reserva inferiores aos legais, demonstrarem que a supressão, leia-se desmatamento, respeitou os percentuais previstos na lei VIGENTE à época da abertura da terra.

 

Da reserva legal no Código Florestal de 1934 e anteriormente a ele

 

Esta foi a redação dada pelo legislador de 1934 ao então polêmico artigo 23 do Decreto Federal nº 23.793/1934 (Código Florestal), sendo, também interessante a transcrição do disposto no seu artigo 24:

 

Art. 23. Nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá abater mais de três quartas partes da vegetação existente, salvo o disposto nos arts. 24, 31 e 52.” (Grifei)

  • 1º O dispositivo do artigo não se aplica, a juízo das autoridades florestas competentes, às pequenas propriedades isoladas que estejam próximas de florestas ou situadas em zona urbana. (Grifei)
  • 2º Antes de iniciar a derrubada, com a antecedência mínima de 30 dias, o proprietário dará ciência de sua intenção à autoridade competente, afim de que esta determine a parte das matas que será conservada.

 

Art. 24. As proibições dos arts. 22 e 23 só se referem à vegetação espontânea, ou resultante do trabalho feito por conta da administração pública, ou de associações protetoras da natureza. Das resultantes de sua própria iniciativa, sem a compensação conferida pelos poderes públicos, poderá dispor o proprietário das terras, ressalvados os demais dispositivos deste código, e desapropriação na forma da lei. (Grifei)

 

Observa-se, desde já, que a norma se refere a terras cobertas (“terras cobertas de matas”), ou seja, a proibição alcançou apenas o desmate e a exploração de terras cobertas com matas ou cobertura florestal existentes no momento da vigência da norma, vale dizer, não era objeto do citado artigo as terras já exploradas. Era a chamada quarta parte.

 

Sob outro aspecto, a par da inexistência de qualquer disciplina quanto às terras já abertas, além do novo limite de 75% (3/4) e da não imposição de qualquer penalidade ao proprietário que desmatou além daquele limite, existia até mesmo a previsão de indenização quando se tratava de florestas particulares (art. 24).

 

Da reserva legal no Código Florestal de 1965 e alterações posteriores

 

Se o código de 1934 não trouxe grandes mudanças a não ser a instituição da chamada “quarta-parte” de reserva florestal, o Código de 1965, que lhe sucedeu, já não teve esta mesma timidez, inclusive com a introdução da área de preservação permanente (APP). Embora mais amplo, é possível dizer que no seu artigo 1º, aquele código também tem a mesma sinalização do anterior, ou seja, disciplinar a proteção das florestas existentes. De forma quase que invariável, as disposições deste novo Código sempre trabalham no sentido de proibição de exploração ou de supressão de florestas existentes.

 

Tanto assim é verdade que previa, na hipótese de florestamento ou reflorestamento de preservação permanente, que o próprio poder público poderia tomar esta providência, mediante o pagamento de indenização se estas áreas já estiveram sendo exploradas pelo proprietário. Eis o teor na íntegra desta norma:

 

Art. 18. Nas terras de propriedade privada, onde seja necessário o florestamento ou reflorestamento de preservação permanente, o Poder Público Federal poderá fazê-lo, se não o fizer o proprietário.

  • 1º Se tais áreas estiverem sendo utilizadas com culturas, de seu valor deverá ser indenizado o proprietário.

 

É possível, portanto, concluir, que embora o segundo código tenha imposto uma restrição ainda maior ao proprietário na exploração do solo, a questão das terras já exploradas e que não constavam com coberturas florestais nos parâmetros estabelecidos neste segundo Código, tal como ocorreu com a legislação anterior, não foi objeto de disciplina na nova legislação, ou seja, o segundo código tinha como objetivo tão somente a normatização da abertura de novas áreas, não se preocupando coma situações já consolidadas.

 

Se o Código Florestal de 1934 foi um marca no estabelecimento de limitação ao desmatamento na exploração de futuras áreas, a MP 2.080/2000, posteriormente convertida na MP 2.167/2001, a partir desta conversão e dos termos de sua nova redação, se traduz no ponto central de toda a celeuma jurídica que se instaurou acerca da reserva legal florestal.

 

A obrigação do proprietário particular de ter a reserva legal florestal em seu imóvel, de acordo com os parâmetros legais (art. 16), nasce com a edição da MP 2.167 de 13/06/2001, portanto, na vigência da atual Constituição Federal e somente 67 (sessenta e sete) anos após a vigência da primeira lei que instituiu a reserva legal florestal no Brasil (Código de 34).

 

Da reserva legal no Código Florestal de 2012

 

Como disto alhures, além da possibilidade da inclusão da área de APP no cômputo da reserva legal, talvez o mais sentido benefício ao proprietário no Código Florestal atual, ele estabeleceu parâmetros diferenciados para recomposição das áreas exploradas antes de 22 de julho de 2008 de acordo com o tamanho do imóvel, inclusive com dispensa em alguns casos, tendo instituído o Cadastro Ambiental Rural a partir de declarações do proprietário em substituição à averbação da reserva legal da matrícula do imóvel.

 

Enganam-se aqueles que, analisando a situação anterior e posterior à vigência do novo Código Florestal de 2012, concluem que os proprietários foram beneficiados. De fato jamais houve fiscalização das cotas da reserva legal, tanto assim é verdade que a maior parte dos imóveis rurais das regiões mais desenvolvidas não contam com reserva de 20% e não se verificou ao longos dos 87 anos desde o código de 1934, providências relevantes do poder público para a regularização.

 

Com o código atual o próprio proprietário já levou ao poder público, através do Cadastro Ambiental Rural (CAR), as informações necessárias e reais da sua reserva legal, e deverá, espontaneamente ou através do Programa de Regularização Ambiental (PRA), promover a regularização da reserva legal do seu imóvel. Não será possível a procrastinação da regularização porque, agora, o poder público lançou meios legais para fazer o próprio proprietário levar até ele não apenas a irregularidade existente (Cadastro Ambiental Rural), mas também a comprovação da regularização e das medidas tomadas (Programa de Regularização Ambiental).

 

Especificamente quanto ao código atual, trouxe ele no artigo 68 a norma que constitui o centro deste estudo, que é a dispensa de recomposição para aquele de demonstrar que promoveu abertura da terra em conformidade com a legislação vigente. Assim, se o proprietário contar com reserva legal em percentual inferior ao exigido atualmente, poderá demonstrar que a reserva existente está de acordo com a lei vigente na época da abertura da terra, ou até mesmo que não existia lei impondo a reserva legal ou qualquer limitação. Para maior fidelidade segue a transcrição da norma referida que, inclusive, traz os meios de provas admitidos:

 

Art. 68. Os proprietários ou possuidores de imóveis rurais que realizaram supressão de vegetação nativa respeitando os percentuais de Reserva Legal previstos pela legislação em vigor à época em que ocorreu a supressão são dispensados de promover a recomposição, compensação ou regeneração para os percentuais exigidos nesta Lei. Grifei

  • 1º Os proprietários ou possuidores de imóveis rurais poderão provar essas situações consolidadas por documentos tais como a descrição de fatos históricos de ocupação da região, registros de comercialização, dados agropecuários da atividade, contratos e documentos bancários relativos à produção, e por todos os outros meios de prova em direito admitidos.

 

Se por um lado optou-se pela aplicação das normas vigentes na época da abertura da terra, pela prevalência do direito adquirido e do ato jurídico consolidado sobre a proteção ambiental (coletividade), o legislador acabou por incidir em grave erro quando atribuiu este ÔNUS DA PROVA ao proprietário porque a ilicitude não se presume. Ora, se o imóvel teve abertura de matrícula e passou por diversos proprietários antes da vigência das primeiras normas ambientais restritivas, cabe ao estado demonstrar que houve alguma infração.

 

Importante observar que diversas normas do atual Código Florestal tiveram análise de sua constitucionalidade através de Ações Diretas no Supremo Tribunal Federal por meio da ADC nº 42, e das ADI’s de nºs. 4.901 e 4902 e, embora ainda estejam pendentes de julgamentos embargos declaratórios interpostos em face das decisões proferidas em referidas ações, a nossa Corte Maior reconheceu a constitucionalidade dos artigos 67, 68 e 69 do atual Código Florestal, in verbis:

 

AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE 42 – DISTRITO FEDERAL – ADC 42 – 28/02/2018 PLENÁRIO

(….)

xxxiv) POR MAIORIA, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia (Presidente), Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, reconhecer a constitucionalidade do art. 67 do Código Florestal;

xxxv) POR MAIORIA, vencido, em parte, o Ministro Edson Fachin, reconhecer a constitucionalidade do art. 68 do Código Florestal;

(…..) http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340792543&ext=.pdf

 

AÇÃO DIRETADE INCONSTITUCIONALIDADE 4.901 – DISTRITO FEDERAL – ADI 4.901/4.902 – 28/02/2018 PLENÁRIO

(…..)

(n) Art. 68 (Dispensa de os proprietários que realizaram supressão de vegetação nativa respeitando os percentuais da legislação revogada se adaptarem às regras mais restritivas do novo Código Florestal): A aplicação da norma sob a regra tempus regit actum para fins de definição do percentual de área de Reserva Legal encarta regra de transição com vistas à preservação da segurança jurídica (art. 5º, caput, da Constituição). O benefício legal para possuidores e proprietários que preservaram a vegetação de seus imóveis em percentuais superiores ao exigido pela legislação anterior, consistente na possibilidade de constituir servidão ambiental, Cota de Reserva Ambiental e outros instrumentos congêneres, traduz formato de política pública inserido na esfera de discricionariedade do legislador; CONCLUSÃO: Declaração de constitucionalidade do artigo 68 do Código Florestal; (grifei)

(……)

(u) Arts. 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 (Regime das áreas rurais consolidadas até 22.07.2008): O Poder Legislativo dispõe de legitimidade constitucional para a criação legal de regimes de transição entre marcos regulatórios, por imperativos de segurança jurídica (art. 5º, caput, da CRFB) e de política legislativa (artigos 21, XVII, e 48, VIII, da CRFB). Os artigos 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 da Lei n. 12.651/2012 estabelecem critérios para a recomposição das Áreas de Preservação Permanente, de acordo com o tamanho do imóvel. O tamanho do imóvel é critério legítimo para definição da extensão da recomposição das Áreas de Preservação Permanente, mercê da legitimidade do legislador para estabelecer os elementos norteadores da política pública de proteção ambiental, especialmente à luz da necessidade de assegurar minimamente o conteúdo econômico da propriedade, em obediência aos artigos 5º, XXII, e 170, II, da Carta Magna, por meio da adaptação da área a ser recomposta conforme o tamanho do imóvel rural. Além disso, a própria lei prevê mecanismos para que os órgãos ambientais competentes realizem a adequação dos critérios de recomposição para a realidade de cada nicho ecológico; CONCLUSÃO: Declaração de constitucionalidade dos artigos 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 do Código Florestal. (grifei)

(…) http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340792363&ext=.pdf

 

Do Desmatamento lícito. Recomposição da reserva legal

 

Demonstrado a existência de norma legal assegurando ao proprietário o direito de manutenção da reserva legal nos parâmetros da legislação vigente à época da abertura da terra, a conclusão que se extrai é de que nem todo imóvel rural que tenha reserva legal em percentual inferior ao previsto na atual legislação está de forma irregular e prescinde da recomposição florestal, sendo que tais normas, ainda que não haja o trânsito em julgado das decisões citadas do E. STF, foram consideradas pela Corte Maior como constitucionais.

 

Contudo e como já exposto, ainda existe a questão relativa ao ÔNUS DA PROVA da licitude da abertura da terra, vale dizer, se houve ou não infração às normas vigentes à época ou, como preferiu dizer o legislador, se o proprietário suprimiu a vegetação florestal observando a lei vigente na época, questão que deverá ser enfrentada pelos nossos tribunais, gerando mais insegurança jurídica até que seja apreciada pela STF.

 

De qualquer forma, a verificação da licitude do ato de explorar o solo com cobertura florestal, somente é possível a partir da consideração de duas premissas. Normas ambientais vigentes nos diferentes períodos da história do Brasil e o momento em que houve a abertura das áreas. A dificuldade maior é a de fixação de quando foi aberta a terra. O proprietário particular, certamente, não contará com prova documental, já que o instituto da prescrição acaba por desobrigar o arquivo de documentos de tantos anos atrás, além do mais, se nos referimos a abertura anterior a 1934 (1º Código Florestal), ela nem mesmo foi feita pelo últimos proprietários.

 

A princípio poderíamos imaginar que voltamos ao início, pois que se não houver prova de que a terra foi aberta antes do Código Florestal de 1934, ou até mesmo do Código Florestal de 1965 se o imóvel não era coberto por matas, a ilicitude seria presumida. Contudo, a história nos fornece subsídios que ajudam a resolver esta questão sem maiores dificuldades, além da existência de norma jurídica que resolve a questão.

 

Primeiro porque, historicamente, à exceção de alguns estados cujo desenvolvimento se deu de maneira mais tardia, na maior parte dos estados brasileiros a exploração da terra já havia se consumado antes mesmo do início do século XX, portanto, milita em favor do proprietário destas regiões a PRESUNÇÃO de que a terra foi aberta antes da vigência do primeiro Código Florestal. Ademais, o estado de direito consagra o princípio da inocência e da licitude dos atos, salvo se houver reconhecimento em sentido diverso em processo legal.

 

Para fins de definição do percentual de área de Reserva Legal, o legislador do Código Florestal atual optou pela aplicação da norma sob a regra tempus regit actum, adotando o princípio da segurança jurídica na forma do artigo 5ª, caput, da Constituição Federal, embora pudesse, a bem da coletividade e do interesse comum, optar pela aplicação da lei atual diante da conclusão da necessidade de preservar o interesse maior, remetendo o particular que promoveu a supressão da vegetação nativa na forma das legislações anteriores para as vias indenizatórias.

 

Contudo, no que se refere à prova do momento da abertura da terra, optou por inverter o ônus da prova, atribuindo ela ao proprietário, quando é certo que a Constituição Federal estabelece de forma expressa, como direito fundamental, o PRINCÍPIO DA INOCÊNCIA E DA NÃO CULPABILIDADE (art. 5º, LVII da Constituição/1988). Se como dissemos poderia haver a relativização da segurança jurídica a bem da coletividade para adotar a norma ambiental atual mais restritiva, sem prejuízo das indenizações devidas ao particulares, esta conclusão não existe quanto ao princípio constitucional da inocência e da não culpabilidade, que não pode ser afastado em nenhuma hipótese.

 

Neste contexto, embora o parágrafo 1º do artigo 68 mencione apenas quais serão os meios de prova admitidos, está a indicar, quando cita que tais provas poderão ser produzidas pelo proprietário, salvo entendimento contrário, que o ônus da prova seria dele, motivo pelo qual, concluímos que tal inversão de ônus revela-se inconstitucional, cabendo ao poder público demonstrar a ilicitude da supressão da reserva legal.

 

De qualquer forma, é na própria lei ambiental que encontramos elementos que demonstram a licitude da abertura das terras no Brasil. Reportamos-nos à norma esculpida no artigo 37 do Código Florestal de 1965 (versão original). Eis o teor daquela norma:

 

Art. 37. Não serão transcritos ou averbados no Registro Geral de Imóveis os atos de transmissão “inter vivos” ou “causa mortis”, bem como a constituição de ônus reais, sobre imóveis da zona rural, sem a apresentação da certidão negativa de dívidas referentes a multas previstas nesta Lei ou nas leis estaduais supletivas, por decisão transitada em julgado.

 

Embora o Código Florestal de 1965 tenha sofrido inúmeras alterações, esta norma manteve-se com a mesma redação até a promulgação do segundo Código Florestal (1965). Portanto, considerando que todas as terras registram inúmeras alienações e onerações de toda ordem desde o período de vigência do primeiro Código Florestal, bastando para esta constatação uma análise da cadeia dominial a partir dos arquivos do registro público, é possível concluir que, se houve o registro de títulos translativos ou de qualquer outro ônus real, é porque o imóvel não era objeto de nenhum auto de infração ambiental.

 

Esperando ter contribuído para o estudo do tema, mas acreditando que a questão deverá ser enfrentando pela nossa Corte Maior (STF), concluímos que para aplicação da dispensa da obrigação de recomposição da reserva legal se em percentuais inferiores ao da legislação atual, àquele que promoveu a supressão da vegetação nativa sob a vigência de normas menos restritivas, o ÔNUS DA PROVA não pode ser atribuído ao proprietário, seja em razão do princípio constitucional da inocência e da não culpabilidade, seja porque existiam disposições legais anteriores que impediam o registro de atos translativos da propriedade sem a apresentação da certidão negativa ambiental ou, ainda, porque se houve o ilícito ambiental em épocas remotas e na vigência de outros leis, ele deve ser demonstrado com a apresentação dos respectivos autos de infrações ambientais pelo Poder Público.

 

Abstract: This paper aims to study the controversial aspects of the institution of the legal reserved forest, notably regarding what we call in this paper as lawful and unlawful deforestation, which are very important issues related to the development of its consequences in the legal field for the rights of an individual.

 

Referências Bibliográficas

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MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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SILVA, Américo Luís Martins. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. São Paulo; Ed. Revista dos Tribunais, 2005. v. 2.

[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – p 105

[2] PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. P 109.

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil. P. 64

[4] DUTRA, Ozório Vieira. Reserva Legal. P. 15.

[5] SILVA, Américo Luiz Martins. Direito do Maio Ambiente e dos Recursos Naturais. P. 81.

[6] SILVA, Américo Luiz Martins. Direito do Maio Ambiente e dos Recursos Naturais. P. 82

[7]  DUTRA, Ozório Vieira. Reserva Legal. P. 1

 

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